A ascensão abrupta à Damascos pelas forças armadas da oposição, “armed opposition”, teria apanhado muitos de surpresa. Não fosse pelo simples facto da Hay’at Tahrir al-Sham (HTS) constar ainda na lista das organizações terroristas, cujo líder Abu Mohammed al-Jawlani nom de guerre de Ahmed al-Sharaa, foi taxado em 2013 pelos EUA como “terrorista global”, tendo sido oferecido $10 milhões de dólares como recompensa para quem tivesse informações que conduzissem a sua captura. Esta é a surpresa das surpresas: porque foi poupado pelos intensos bombardeamento americanos?
Talvez a máxima – “o melhor amigo é o inimigo do nosso inimigo” – encerre uma resposta orientadora. Orientadora porque ajuda a perceber o sentido do termo “oportunidade”, que, coincidentemente, foi evocado no Domingo passado pelo Presidente Americano, Joe Biden, e repetido pela Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia e pelo Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Pergunta-se: De que oportunidade em concreto se trata, quando al-Sharaa é perfilhado como “terrorista global” e HTS, apesar das declarações recentes de Pat McFadden, Ministro Britânico para Segurança Nacional, indicar para uma eventual revisão do seu status como um grupo terrorista, o Ministério do Interior do Reino Unido (Home Office) classifica a HTS como tendo impressões digitais na notória organização al-Nusra, filiada à al-Qaeda (Home Office, Under Terrorism Act 2000), ou seja, o eixo do mal segundo o jargão do antigo Presidente George Bush.
O “terrorista” foi exorcizado? Se sim, de onde teria vindo a “água benta”? Teria esta sido antes uma mescla das águas de Washington, Bruxelas, Londres, Ankhara e Tel Aviv? Seja o que for a NATO vê no colapso de Assad uma oportunidade única de ter na Síria um aliado que seja capaz de dançar a música da sua orquestra. Com isto vem a oportunidade de alienar as bases da Russas no Mediterrâneo: a base naval de Tartus e base aérea de Khmeimim na região sudeste de Latakia. A presença militar da Russia expressa um vínculo de conveniência que remonta a Primavera Árabe que abanou o regime de Assad em 2015.
Para uma maior precisão, o princípio da queda do regime dinástico al-Assad teve origem no calor da Primeva Árabe que açoitou o Médio Oriente, culminando no eclipse dos Presidentes Zine el Abidine Ben Ali da Tunisia e Hosni Mubarak do Egito, respectivamente, em Janeiro e Fevereiro de 2011.
Na Síria, a Primavera foi iniciada por um grupo de 15 adolescentes da região sul de Daraa que ousou pintar as paredes da escola secundária de grafites com estes dizeres: “Liberdade”, “Queda ao regime”, e “Agora é sua vez Doctor!”
Este acto espontâneo de coragem e bravura levou a prisão e tortura dos adolescentes, causando ondas de manifestações locais que exigiram a libertação imediata dos estudantes.
O que foi um acto esporádico localizado deu lugar a uma escalada de guerra civil em 2012. Foi, na verdade, uma guerra entre facções armadas locais, mas que foram, rapidamente, subjugadas pelo exército de Assad, secundado por patrões e forças externas desde Guarda Revolucionário Iraniana e Hezbollah. Porém, as fissuras foram abertas e delas nasceram em 2014 o Estado do Califado Islâmico (ISIS), que assumiu o controle do terço do território Sírio, fixando o seu bastião em Raqqa.
A brutalidade de ISIS foi mediatizado de forma extensiva nas plataformas digitais, espalhando a fúria impune seus actos de terror. Tais eram os actos de decapitação dos “infiéis” protagonizados pelas milícias de Abu Bakr al-Baghdadi. O que suscitou a intervenção militar da NATO, para impedir o expansionismo de ISIS. A intensificação de bombardeamento decapitou al-Baghdad. Entretanto, foi o poderio bélico de Putin emprestado à Bashar al-Assad a partir de 2015 que o regime recuperou e cementou o poder em territórios e cidades capturadas por ISIS.
A premonição dos 15 adolescentes de Daraa, feita há 13 anos, “Doctor agora é sua vez” cumpriu-se, finalmente. O Doctor oftalmologista Bashar al-Assad caiu por fim e velou consigo vidas arruinadas de milhões de violência tirânica da dinastia al-Assad. Esta dinastia, por sinal, uma das mais infâmes, iniciou-se na década de 1971 com o apogeu do Presidente Hafez al-Assad que durou mais de 29 anos até a data de sua morte e substituição pelo próprio filho em 2000. Assad pouco fez para desmantelar o regime Baath costurado pelo seu pai Hafez com linhas sectárias, diferenciadas entre os Sunnis e não Alawites que detinham o controle de instituições politicas e os Alawites que controlavam o aparato militar, de segurança e inteligência.
O regime de ditadura do partido-único com pendor presidencial forte manteve, durante décadas do culto personalidade em torno de Hafez e sua família. A dinastia ditatorial al-Assad perdurou por mais de 53 anos. Mas a questão crucial surge do argumento de jornalista Hugo Buchega, que segundo o mesmo “o fim do regime de Assad vai redimensionar a balança do poder”. De facto, Assad, agora exilado na Rússia, foi abandonado pelos seus aliados de peso: Irão e Rússia. “Putin, porque me abandonaste?” Teria sido esta pergunta dum Assad desesperado, confuso, impotente e amordaçado ao seu amigo Vladimir Putin. Mas o maior opositor de quaisquer regimes despóticos é o tempo.
Os regimes despóticos totalitários crescem. Amadurecem. Apodrecem com e no tempo.
Desta forma, foi-se a dinastia al-Assad. A “balança de poder” neste momento inclina-se do lado dos presumíveis exorcistas de HTS e Ahmed al-Sharaa. O maior teste de al-Sharaa é se vai preservar as bases da Rússia ou se as entregará à NATO?
Até ao momento é difícil encontrar um pronunciamento da parte dos pesos pesados da NATO sobre se teriam estado indirectamente envolvidos no derrube de Assad. Presidente Biden a pare de referir-se duma “oportunidade histórica” alerta o “momento de risco” na Síria.
A incerteza que paira sobre Síria é vista pelo conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, como uma “oportunidade de construir-se algo melhor na Síria, apesar de haver receios de que terroristas, jihadistas e outros grupos sem apreço pelos interesses americanos, possam tirar vantagens da situação”. Para Sullivan, “América está preparada em trabalhar com quem seja, desde que esteja comprometido com a estabilidade e futuro democrático inclusivo para Síria”.
De qualquer forma, o alívio expressivo de cidadãos de que “finalmente é possível respirar-se em Damascos” traduz uma oportunidade para Sírios forjarem um estado centrado nas pessoas, na protecção dos direitos humanos, promoção da dignidade, garantia da igualdade, da tolerância e realização do desenvolvimento e bem-estar dos Cidadãos Sírios integral.
Todos os regimes totalitários dinásticos sustentados pela fúria da violência impune contra os seus próprios cidadãos, pelo culto da personalidade, pelo saque desenfreado, pela corrupção gangrenosa, pela peste da partidarização do estado, nascem, crescem e colapsam no tempo. Foi-se a regime Baath de al-Assad. Da mesma forma seguirá a FRELIMO e o MPLA!
Paulo Faria
10.12.2024